Numa circunstância normal numa democracia consolidada- um governo com apoio minoritário no parlamento não consegue fazer aprovar o seu orçamento de Estado, e, como consequência nem sempre necessária, o chefe de Estado dissolve o órgão representativo e convoca eleições, com a esperança de que delas resulte um quadro parlamentar que permite a formação de um governo com apoio mais estável- mas que não era apontada pela maior parte dos analistas políticos portugueses como muito provável, a rejeição do Orçamento de Estado para 2022 pela maior parte dos deputados da Assembleia da República foi interpretada pelo Presidente da República como uma ruptura definitiva de confiança entre os partidos políticos que constituíam a “geringonça”, tendo Marcelo Rebelo de Sousa optado por dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas. Este desfecho tornou-se inevitável quando o Presidente da República esclareceu antecipadamente que seria esse o seu procedimento, e se tornou claro que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português não recuariam com exigências que sabiam que o governo do Partido Socialista não aceitaria.
A dúvida persistiu até ao instante da votação porque a maior parte do país que segue atentamente e comenta os últimos desenvolvimentos políticos não quis acreditar que os partidos à esquerda do PS provocariam eleições num momento que não lhes aparentava ser favorável.
Se acreditarmos naquilo que os estudos de opinião dos últimos dias nos dizem, o país político não estava enganado. As principais alterações previstas no apoio aos partidos que vinham sustentando o Governo apontam para o recuo eleitoral da CDU e do BE (partido que parece ser o principal prejudicado) e o reforço do PS.
No lado direito da Assembleia da República, se há vencedores (CHEGA e IL) e derrotados (CDS) anunciados, a abertura de um processo de disputa pela liderança no maior partido da oposição em cima das eleições legislativas introduz um elemento de incerteza.
Se há algo que demonstra o quanto esta crise política não era encarada como provável, é o timing escolhido por Paulo Rangel para desafiar a liderança de Rui Rio no PSD. Tanto que, se o Presidente da República não tivesse sido “amigo” na determinação do calendário eleitoral, Rangel e grande parte do “aparelho” do PSD tinham sido apanhados fora de pé. Paulo Rangel, apoiado por todo o “passismo” e beneficiando do desgaste que Rui Rio tem sofrido ao longo de quatro anos de oposição a um governo popular, planeava assumir a liderança da oposição no pressuposto de que teria ainda pelo menos um ano para preparar o PSD para eleições, ano esse que se esperava vir a ser complicado do ponto de vista económico e em que as tensões entre o PS e os partidos à sua esquerda se iriam avolumando; só que a crise política rebentou mais cedo do que o previsto, e correu o risco real (partindo do princípio de que a interferência de Marcelo Rebelo de Sousa no PSD não é ainda maior do que aquilo que parece) de ter de desistir da candidatura já depois de muitos dos seus apoiantes terem saído das sombras e correndo o risco de os expor aos eventuais ajustes de contas em que as guerras internas dos partidos são tão férteis.
Salvo pelo Presidente da República, Paulo Rangel, que só perderá o partido se os militantes do PSD desobedecerem em massa aos seus dirigentes locais (que apoiam em grande maioria Rangel), ainda assim irá para legislativas com um partido com feridas em carne viva, permeável a todos os ataques de irresponsabilidade e vontade de poder a todo o custo. Se olharmos para disputas eleitorais recentes em Portugal, o resultado é previsível. Se, contra todas as probabilidades, Rio vencer, terá muitos dos mesmos problemas.
A maior ironia de todo este processo ainda seria o único partido que tudo fez para evitar eleições ser o principal beneficiário delas. Há quem diga que António Costa tem sorte.